Avanços no tratamento da esclerose múltipla rendem “Oscar da ciência” a dois médicos e reacendem esperanças

A ciência médica vive de descobertas. E, às vezes, algumas dessas descobertas têm o poder de mudar o rumo da história de uma doença. Foi o que aconteceu com a esclerose múltipla, uma enfermidade neurológica debilitante, que afeta quase 3 milhões de pessoas no mundo. Neste ano, os médicos Stephen Hauser, neurologista americano, e Alberto Ascherio, epidemiologista italiano, receberam o Breakthrough Prize, considerado o “Oscar da Ciência”, por suas contribuições revolucionárias no entendimento e tratamento da esclerose múltipla (EM).

O que é a esclerose múltipla?

A esclerose múltipla é uma doença inflamatória crônica autoimune que afeta o sistema nervoso central. Ela atinge principalmente o cérebro e a medula espinhal, causando uma série de sintomas como fadiga, perda de coordenação motora, distúrbios visuais, dificuldades cognitivas e até paralisia. É uma das principais causas de incapacidade neurológica em jovens adultos.

A condição ocorre quando o sistema imunológico, por razões ainda não totalmente compreendidas, ataca a bainha de mielina — o revestimento que protege as fibras nervosas — causando inflamação e lesões. Com isso, os impulsos elétricos enviados pelo cérebro passam a circular de forma desordenada, resultando nos sintomas.

A revolução de Stephen Hauser: foco nos linfócitos B

Durante muito tempo, acreditava-se que os principais responsáveis pela esclerose múltipla eram os linfócitos T, células do sistema imune. Mas Stephen Hauser, neurologista e diretor do Instituto de Neurociências da Universidade da Califórnia, desafiou essa premissa.

Sua ideia de que os linfócitos B (e não apenas os T) poderiam estar por trás da inflamação cerebral da EM foi recebida com ceticismo. Mas suas pesquisas em primatas, que demonstraram lesões semelhantes às humanas, mostraram que atacar essas células com terapias específicas podia controlar a doença. E deu certo.

Com apoio da indústria farmacêutica, Hauser liderou ensaios clínicos que mostraram uma redução de mais de 90% na inflamação cerebral de pacientes com EM após o uso de terapias focadas nos linfócitos B. Foi o início de uma nova era: hoje, essas terapias são aprovadas e amplamente utilizadas, oferecendo melhora significativa da qualidade de vida e controle da progressão da doença.

Alberto Ascherio e a relação entre EM e o vírus Epstein-Barr

Enquanto Hauser mirava nas células imunológicas, Alberto Ascherio, professor de Harvard, investigava um enigma geográfico: por que a esclerose múltipla é mais comum em países do hemisfério norte?

Sua hipótese: o vírus Epstein-Barr (VEB), conhecido por causar mononucleose, poderia estar envolvido. Após mais de 20 anos acompanhando milhões de recrutas das Forças Armadas dos EUA, sua equipe confirmou que a EM só se desenvolve em pessoas que foram previamente infectadas pelo VEB.

Essa descoberta não apenas confirmou o papel desse vírus na doença, mas também criou novas possibilidades de prevenção e tratamento. Se o VEB é um fator “necessário” (mas não único), vacinas ou terapias antivirais podem, no futuro, diminuir drasticamente a incidência da EM.

Impacto prático: novos tratamentos e pesquisas

As descobertas de Hauser e Ascherio não apenas explicam melhor a origem da EM, mas também moldam o presente e o futuro do tratamento da doença.

Hoje, há medicamentos capazes de retardar a progressão da esclerose múltipla, controlando surtos e mantendo a funcionalidade do paciente por mais tempo. Além disso, pesquisadores trabalham em terapias cada vez mais específicas, com menos efeitos colaterais e melhor custo-benefício.

As implicações também vão além da esclerose múltipla. O vínculo entre infecção viral e doenças neurodegenerativas vem ganhando força. Ascherio, inclusive, estuda a relação entre infecções e doenças como Alzheimer, Parkinson e ELA (Esclerose Lateral Amiotrófica).

O que ainda falta?

Apesar dos avanços, a esclerose múltipla ainda não tem cura. Nem todos os pacientes respondem bem aos tratamentos existentes. Além disso, o diagnóstico precoce ainda é um desafio em muitos países, especialmente em regiões com menos acesso a neurologistas e exames especializados.

Outro ponto importante é o acesso às terapias modernas. Muitas delas são de alto custo, e nem sempre estão disponíveis na rede pública. Por isso, há um esforço global para ampliar o acesso a diagnósticos e tratamentos eficazes.

Conclusão

As conquistas de Hauser e Ascherio representam um divisor de águas na luta contra a esclerose múltipla. Suas trajetórias mostram o poder da ciência de transformar a vida de milhões de pessoas. Mostram, também, que a curiosidade, a persistência e a colaboração entre pesquisadores, médicos e instituições são as verdadeiras chaves da inovação médica.

A esclerose múltipla já foi considerada uma sentença — hoje, é uma condição que pode ser gerida com dignidade, esperança e ciência.